<i>We Shall Overcome</i>

Poucos in­tér­pretes e cri­a­dores de mú­sica po­pular terão me­re­cido ao de­sa­pa­re­cerem o des­taque sobre a sua fi­gura e o seu tra­balho que pra­ti­ca­mente em todo o mundo foi atri­buído à morte na pas­sada se­mana, com 93 anos, de Pete Se­eger.

 

Foto José Carlos Pratas

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É de su­bli­nhar que a atenção de­di­cada pela co­mu­ni­cação so­cial foi – in­clu­sive em Por­tugal – bas­tante ri­go­rosa, con­tra­ri­a­mente ao que ha­bi­tu­al­mente su­cede ao re­cordar de per­so­na­li­dades com uma pos­tura tão fir­me­mente pro­gres­sista e de es­querda com foi a de Se­eger. Para tanto terão se­gu­ra­mente con­tri­buído três as­pectos mais im­por­tantes que de­finem a sua per­so­na­li­dade e a sua vida: a co­e­rência, a per­sis­tência e a sim­pli­ci­dade e mo­déstia sempre jus­ta­mente as­si­na­ladas.

O no­ti­ciário que lhe foi de­di­cado for­nece um pa­no­rama bas­tante com­pleto do es­sen­cial da sua longa vida e da sua in­tensa ac­ti­vi­dade cul­tural e, so­bre­tudo, cí­vica e po­lí­tica, mas exis­tirão se­gu­ra­mente al­guns as­pectos que se jus­ti­fica su­bli­nhar e de­sen­volver.

Fac­tores di­versos con­ce­deram a Se­eger uma im­por­tância par­ti­cular no pa­no­rama da mú­sica po­pular norte-ame­ri­cana – se qui­sermos, o que mais es­pe­ci­fi­ca­mente se chama mú­sica folk du­rante quase um sé­culo. Para além do pe­cu­liar ca­risma que a sua per­so­na­li­dade, feita de sim­pli­ci­dade e afec­ti­vi­dade, exerceu sobre pra­ti­ca­mente a to­ta­li­dade dos com­pa­nheiros de jor­nada, Se­eger impôs-se pela co­e­rência de um po­si­ci­o­na­mento po­lí­tico e pú­blico in­vul­gares. A sim­pli­ci­dade aus­tera da sua vida pes­soal é apenas um exemplo que en­contra muitas ou­tras ex­pres­sões na cons­tante dis­po­ni­bi­li­dade para par­ti­cipar em todas as causas que con­si­de­rava justas com um di­na­mismo que gerou desde os pri­meiros grupos que cons­ti­tuiu com Woody Guthrie (seu com­pa­nheiro de sempre), os Al­manac Sin­gers até mo­bi­li­za­ções de massas in­vul­gares nos EUA.

Se­eger in­sere-se numa linha cul­tural de in­ter­venção po­lí­tica através da canção po­pular que tem, desde o sé­culo XIX, pro­fundas raízes nos Es­tados Unidos. Para esta si­tu­ação con­tri­buiu de­ter­mi­nan­te­mente a iden­ti­dade so­cial da mai­oria da emi­gração eu­ro­peia, es­ma­ga­do­ra­mente cons­ti­tuída, por um lado, por tra­ba­lha­dores e, por outro, a di­ver­si­dade de raízes cul­tu­rais que apre­sen­tavam. Di­fe­ren­te­mente do que su­cedia na Eu­ropa onde as classes do­mi­nantes im­pu­nham uma re­a­li­dade cul­tural e mu­sical do­mi­nantes, an­co­rada em sé­culos de de­sen­vol­vi­mento e es­tudo, a massa gi­gan­tesca de cam­po­neses ou de­ser­tados das grandes ci­dades que par­tiram da Eu­ropa bus­cando so­bre­vi­vência do outro lado do Atlân­tico ti­nham de seu pouco mais do que uma me­mória tra­di­ci­onal be­bida na cul­tura oral po­pular.

Qual­quer pro­cesso de es­tru­tu­ração na nas­cente so­ci­e­dade ame­ri­cana en­fren­tava sempre esta di­ver­si­dade cul­tural lado a lado com um es­ma­gador anal­fa­be­tismo. Antes da li­te­ra­tura e apenas acom­pa­nhando uma ora­li­dade que bus­cava lín­guas co­muns, a mú­sica trans­formou-se num factor bá­sico de so­ci­a­bi­li­dade para as mais di­versas cir­cuns­tân­cias, desde a im­por­tante re­li­gi­o­si­dade (que em muitos casos es­tava no pró­prio centro da mi­gração, so­bre­vi­vendo à in­to­le­rância na Eu­ropa), até aos es­forços do mais va­riado tipo de or­ga­ni­zação.

O de­sen­vol­vi­mento do mo­vi­mento ope­rário em me­ados do sé­culo XIX não fugiu a este pa­drão e em poucos países o can­ci­o­neiro li­gado aos tra­ba­lha­dores de­sem­pe­nhou um papel tão im­por­tante como na es­tru­tu­ração e nas lutas so­ciais do con­tra­di­tório mas po­de­roso mo­vi­mento sin­dical norte-ame­ri­cano e, pos­te­ri­or­mente, nas suas ex­pres­sões po­lí­ticas, ul­tra­pas­sando o já re­le­vante papel que o mesmo fe­nó­meno de­sem­pe­nhara entre o pro­le­ta­riado bri­tâ­nico e ir­landês.

A pri­meira ex­pressão da ac­ti­vi­dade dos mú­sicos e ar­tistas em que Pete Se­eger se in­tegra co­meçou assim por ser uma com­bi­nação de uma ac­ti­vi­dade quase et­no­mu­si­co­ló­gica de pro­cura e fi­xação de um pa­tri­mónio oral e dis­perso e de­pois a sua di­vul­gação re­a­li­zada si­mul­ta­ne­a­mente com um tra­balho de cri­ação de novos temas cor­res­pon­dendo a novas si­tu­a­ções e lutas e à sua pro­ta­go­ni­zação no calor mesmo dos con­flitos la­bo­rais e so­ciais. São in­dis­so­ciá­veis a ac­ti­vi­dade de di­vul­gação e re­cri­ação de temas já exis­tentes (de tra­dição branca ou afro-ame­ri­cana), com a ac­ti­vi­dade de com­po­sitor, esta com o traço pe­cu­liar da su­ces­siva cri­ação de le­tras para me­lo­dias co­nhe­cidas no quadro de novas si­tu­a­ções, as­se­gu­rando o papel agre­gador e mo­bi­li­zador de temas mu­si­cal­mente já co­nhe­cidos. Se «If I Had a Hamer» ou «Where Have the Flowers Gone» são exem­plos claros da ca­pa­ci­dade cri­a­dora de com­po­sitor de Se­eger, as, por vezes subtis, al­te­ra­ções feitas em temas que o po­pu­la­ri­zaram como «We Shall Over­come», «Wich Side Are You On», «Casey Jones», etc. re­velam a vi­ta­li­zação desse rico pa­tri­mónio po­pular.

É es­sen­cial acres­centar a este quadro o traço que talvez se possa con­si­derar ver­da­dei­ra­mente único em Pete Se­eger: a sua es­pan­tosa ca­pa­ci­dade de trans­formar qual­quer pú­blico num coro apai­xo­nado e com­ba­tivo, mas a que a sua ex­tra­or­di­nária ca­pa­ci­dade con­cedia igual­mente uma muita es­pe­cial be­leza. Inú­meras gra­va­ções (in­cluindo a do me­mo­rável con­certo de 23 de De­zembro de 1983 em Lisboa, no então Pa­vi­lhão dos Des­portos) re­cordam esse traço ex­tra­or­di­nário que trans­for­mava Se­eger, so­zinho num palco com o seu banjo no ma­estro de gi­gan­tescos coros com­ple­ta­mente ca­suais, mas nos quais ele che­gava ao ponto de em mi­nutos en­saiar har­mo­nias e po­li­fo­nias, trans­for­mando uma au­di­ência numa com­ba­tiva e fra­terna co­mu­ni­dade.

A po­lí­tica como opção

Um se­gundo traço que é in­dis­pen­sável as­si­nalar em re­lação da Pete Se­eger é a de­ter­mi­nação e co­e­rência das suas op­ções po­lí­ticas. Desde os anos 30 da Grande De­pressão a sua par­ti­ci­pação nas greves dos mi­neiros do Ken­tucky ou nas lutas dos cam­po­neses ex­pulsos do Ar­kansas e do Ok­klahoma pelas tem­pes­tades na­tu­rais e pelos in­te­resses dos bancos até, a poucos meses da sua morte, quando se juntou aos pro­testo contra a agressão ao Iraque ou ao mo­vi­mento «Oc­cupy Wall Street», Se­eger soube sempre de que lado es­tava – e es­teve.

Se a sua fun­da­mental par­ti­ci­pação nos anos 60 no Mo­vi­mento dos Di­reitos Cí­vicos e na luta contra a guerra do Vi­et­name se trans­for­maram nas mais co­nhe­cidas e di­vul­gadas das suas pre­senças, é quase im­pos­sível enu­merar as ma­ni­fes­ta­ções, greves, ocu­pa­ções, sit ins, pro­testos de toda a ordem que vão desde a gi­gan­tesca Marcha sobre Washington até à mais lon­gínqua in­ter­venção na de­fesa da jus­tiça e da li­ber­dade.

À se­me­lhança do es­sen­cial dos ho­mens e mu­lheres que di­na­mi­zaram o mo­vi­mento folk nas suas di­versas fases (e a afir­mação mantém-se hoje in­tei­ra­mente vá­lida) Pete Se­eger era um homem cla­ra­mente de es­querda. Ja­mais iludiu a sua pro­xi­mi­dade do Par­tido Co­mu­nista dos EUA, per­tur­bada pelo XX Con­gresso do PCUS e pelos acon­te­ci­mentos da Hun­gria em 1956, mas que nunca o afastou de uma pos­tura de so­li­da­ri­e­dade com os co­mu­nistas que pros­se­guem a di­fícil in­ter­venção no ventre mesmo do mais agres­sivo ca­pi­ta­lismo.

Per­se­guido pelo mc­carthysmo, a au­dição de Se­eger na Co­missão de Ac­ti­vi­dades Anti-ame­ri­canas cons­ti­tuiu um no­tável exemplo de co­e­rência, co­ragem e in­te­li­gência. Para além do ines­que­cível epi­sódio de com­pa­recer na Co­missão trans­por­tando o seu banjo com o qual pre­tendeu cantar para os per­plexos in­qui­si­dores as can­ções que o acu­savam de ter com­posto para ac­ções de PCEUA (o que até nem era in­tei­ra­mente falso...), Se­eger re­cusou-se a prestar qual­quer de­cla­ração que o com­pro­me­tesse a ele ou a qual­quer dos seus com­pa­nheiros, con­se­guindo numa his­tó­rica ar­gu­men­tação evitar até a in­vo­cação da 5.ª emenda da Cons­ti­tuição dos EUA que, feita para as­se­gurar o di­reito ao si­lêncio a um acu­sado que con­si­dere que de­cla­ra­ções suas o podem in­cri­minar, foi trans­for­mado pelo fas­ci­zante mc­carthysmo numa con­fissão de culpa!

Ao longo de quase uma dé­cada, o que já então se apre­sen­tava como uma car­reira pro­me­te­dora (no­me­a­da­mente através do seu grupo We­a­vers) foi de­vas­tado pela lista negra que o proibiu em rá­dios, te­le­vi­sões e edi­ções dis­co­grá­ficas. Foi um pe­ríodo di­fícil para Se­eger e para a sua com­pa­nheira de sempre (e su­porte de­ci­sivo em toda as cir­cuns­tân­cias), Toshi, mas a que a per­sis­tência deu um re­sul­tado ines­pe­rado às classes do­mi­nantes: du­rante anos Se­eger per­correu as uni­ver­si­dades e sin­di­catos de Norte a Sul dos EUA can­tando às vezes para au­di­ên­cias de es­cassas de­zenas de jo­vens. Jo­vens em que a classe do­mi­nante tro­peçou nos anos 60 e 70!

Do muito que ha­veria a dizer, re­cor­demos ainda o im­pres­si­o­nante traço de firme con­fi­ança e op­ti­mismo no Homem que dava o braço à co­e­rência e de­ter­mi­nação da que foi sem dú­vida uma das mai­ores fi­guras da mú­sica con­tem­po­rânea. Ficou o exemplo – e as can­ções. RC

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Well may the world go

Well may the world go,
The world go, the world go,
Well may the world go,
When I'm far away.

Well may the skiers turn,
The swim­mers churn, the lo­vers burn
Peace, may the ge­ne­rals learn
When I'm far away.

Sweet may the fiddle sound
The banjo play the old hoe down
Dan­cers swing round and round
When I'm far away.

Fresh may the bre­ezes blow
Clear may the streams flow
Blue above, green below
When I'm far away.

 

Pete Se­eger - 1973

 

Que o mundo possa con­ti­nuar (bis) / Quando eu já es­tiver longe // Possam os es­qui­a­dores des­lizar / Os na­da­dores abra­çarem-se, os apai­xo­nados abrasar-se / Que os ge­ne­rais aprendam o que é a paz / Quando eu já es­tiver longe // Doce seja o som do vi­o­lino / Toque o banjo os seus ve­lhos ritmos / Os dan­ça­rinos con­ti­nuem a rodar / Quando eu já es­tiver longe // Sopre fresca a brisa / lím­pidas corram as águas / Azul sobre todos, verde seja a terra / Quando eu já es­tiver longe.

 

RC



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Uma enorme operação de propaganda (*)

Após o go­verno ter anun­ciado um dé­fice or­ça­mental em con­ta­bi­li­dade pú­blica in­fe­rior a 5%, que é di­fe­rente do dé­fice real, que é só dado pela con­ta­bi­li­dade na­ci­onal, Marco An­tónio, co­or­de­nador da co­missão po­lí­tica na­ci­onal do PSD, veio logo dizer na te­le­visão que «Por­tugal está no rumo certo» e con­gra­tular-se pelos «Bons re­sul­tados al­can­çados»; José Gomes Fer­reira da SIC, em­bora di­zendo que aquele valor do dé­fice devia ter sido al­can­çado de outra forma, também afirmou na mesma linha que com aquele «Re­sul­tado es­tamos de pa­ra­béns»; Bruno Pro­ença, di­retor do D.E. es­creveu mesmo «Pa­ra­béns aos por­tu­gueses pelo dé­fice de 2013»; etc.